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terça-feira, 7 de junho de 2011

Entrevista Com Maria Inês Hamann Peixoto - Arte e Capitalismo - Relações Perigosas

Maria Inês Hamann Peixoto é de Ponta Grossa – PR. Doutora em Educação na área de filosofia, história e educação pela UNICAMP – Universidade de Campinas, é graduada em Pedagogia pela UFPR – Universidade Federal do Paraná, e em Filosofia pela PUC – Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Concluiu especialização em História da Arte / Artes Plásticas na Escola de Música e Belas Artes do Paraná, envolvendo-se com pesquisa nesse campo do conhecimento, elaborando performances, instalações, esculturas e objetos. De formação marxista, defende o acesso coletivo aos bens culturais, buscando romper com a barreira entre o artista e o público, entendendo a arte como elemento humanístico. É autora do livro “Arte e Grande Público – A Distância a ser Extinta”. Ao longo desta semana, a professora, que também é artista plástica, esteve em São Luís ministrando seminário para educadores, artistas e técnicos administrativos da ONG Formação sobre a concepção marxista de arte e a crítica da mesma dentro do modo de produção da sociedade capitalista, evidenciando as relações hostis entre a sociedade burguesa e a arte. Na última quarta-feira, 24 de outubro, concedeu ao jornalista Paulo Melo Sousa, do JP Turismo, a entrevista abaixo, com a qual brindamos nossos leitores.

Paulo Melo Sousa – Professora, fale-nos um pouco acerca da apropriação da arte pela sociedade burguesa, segundo a concepção marxista.

Maria Hamann Peixoto – Na sociedade burguesa, a arte foi absorvida por uma concepção classista, já que nela existe a classe que detém o domínio econômico e político e a classe trabalhadora, que produz a riqueza. A burguesia, ao se consolidar no poder, começa a forjar dentro da produção artística um nicho específico, denominado pela própria burguesia como aquilo que se conhece como “arte erudita”. Até mesmo dentro do que se denomina de arte popular a burguesia pinça, seleciona alguns artistas que passarão a integrar o que ela chama de grande arte, ou “arte erudita”.

PMS - Qual a raiz dessa diferenciação?

MHP - Primeiramente porque a classe burguesa não tem o menor interesse em compartilhar seu modo de vida; ela quer a distinção em todas as áreas, inclusive na ciência, ao separar o saber que foi criado pelos trabalhadores ao sofisticá-lo, afastando dos próprios trabalhadores a capacidade de alcançá-lo, haja vista, nos dias de hoje, a dificuldade de acesso à universidade pela classe trabalhadora. Esse processo se reproduz na chamada arte erudita, fazendo parte dela apenas aquela arte assim denominada pelo sistema de arte...

PMS - Por favor, explique essa denominação...

MHP - Trata-se de um sistema criado pela burguesia, e que envolve tudo o que se ensina nas escolas sobre arte, o que se publica sobre arte e sobre os artistas, o que é mostrado nos museus, nos espetáculos teatrais, nos salões de arte ou nas bienais. A seleção das obras artísticas é feita segundo critérios internos definidos por esse mesmo sistema, pelos críticos de arte do sistema, separando o que deve ou não compor a grande arte.

PMS - Mas sempre existiu uma reação a esse processo, não é verdade?

MHP - Sim, as vanguardas foram um grito justamente contra tal estado de coisas, contra essa ruptura entre uma arte que se pretende erudita e uma arte chamada de popular, mas também as vanguardas foram absorvidas pelo sistema, que age dessa forma com tudo aquilo que se contrapõe a ele, enfim, que o contradiz. Nós temos o caso típico do Marcel Duchamp...

PMS - Duchamp, sobretudo com o Ready Made A Fonte, um urinol de louça, invertido...

MHP - Sim, ele gritaria: é arte aquilo que eu digo que é arte, não o que vocês dizem que é arte, não me submeto a construir a minha arte dentro dos padrões que os críticos do sistema de arte impõem. Entretanto, Duchamp foi subsumido, especialmente depois de sua morte, já que nessa condição o artista não tem mais como se defender (risos). Não me lembro quem disse isto, que para a burguesia bom artista é o artista morto, pois a obra desse artista consegue atingir alto preço no mercado simplesmente porque não irá mais produzir. Pela lei de mercado, o produto que é pouco ofertado alcança preços altíssimos. Então, Van Gogh, um artista que morreu na miséria, doente, e que conseguiu vender apenas um quadro em vida tem hoje suas obras leiloadas em Londres ou em Nova Iorque por milhões de dólares. Dentro do sistema de arte, a originalidade é um parâmetro muito importante; a arte que é reproduzida não possui valor, tem valor aquilo que é original, aquilo que é único, exatamente em razão das leis do mercado de arte.

PMS - O sistema de arte funciona como estratégia ideológica, um braço do poder!

MHP - De forma simplificada, em tal sistema alguns poucos determinam o que, como, quem é legítimo e quem não é, quem faz arte que deve ser ou não consagrada, e esses poucos, entre si, se reconhecem como autoridade; infelizmente, a maior parte dos artistas fazem de tudo para entrar em tal sistema. Aqueles que permanecem fiéis à verdade da sua arte são excluídos do processo. Esse sistema corrompe, pois os marchands, os críticos de arte passam a determinar aquilo que será efetivamente consagrado, considerado legítimo pelo sistema. A submissão pode atingir o ponto de o artista chegar a produzir quase que em escala para atender as encomendas de suas obras.

PMS - Trata-se, é evidente, de uma apropriação indébita do trabalho, da liberdade de expressão do artista, da sua capacidade de transgressão, enfim, da própria contestação de tal sistema. Fale sobre a fragmentação da arte contemporânea (erudita, popular, e aquela direcionada para as massas, para o consumo fácil), entendida como mercadoria, no âmbito da sociedade capitalista, sujeita ao cabresto da oferta e da procura, segundo a crítica marxista, de acordo com o recorte feito pela senhora em seu livro?

MHP - No meu livro eu mostro a irracionalidade da cisão entre a arte erudita e a arte popular, e mostro ainda a quem serve tal fragmentação. A arte é uma expressão do homem enquanto ser histórico e social. Em cada obra de arte está inscrita toda a história humana anterior ao momento presente, que constitui a humanidade de agora. Essa história, filtrada por nossa individualidade, torna-se nossa história pessoal. Então, a arte é uma expressão da humanidade e que, justamente por isso, deve ser usufruída por todos, mas na verdade é negada à imensa maioria da população. Dessa forma, tudo o que o ser humano construiu é apropriado por uma classe dominante, que provoca a implosão das condições de humanização do homem quando veda à maioria o acesso aos bens culturais produzidos por todos nós.

MHP - Daí a fragmentação do sujeito contemporâneo, como afirma Stuart Hall...

MHP - Exatamente, partindo da fragmentação da sociedade em classes, da fragmentação do trabalho humano e do homem em seu trabalho, que já não tem domínio do processo inteiro do seu trabalho, fazendo apenas parte dele, pois não tem acesso ao produto final, com o que se aufere com a venda do produto. Vende o seu trabalho, sua força de trabalho no mercado, o que gera a fragmentação humana. A arte é uma das criações humanas que resgata a totalidade do ser através de um trabalho de criação livre. Então, junto com o artista, a fruição estética ativa e transforma quem faz arte, quem se relaciona presencialmente com a obra de arte. Cada obra representa uma totalidade, pois o artista que a produziu é uma totalidade em todas as suas dimensões, a dimensão corpórea, os sentidos de um modo geral, a dimensão ética, social, política, enfim, de comunicação...

PMS - Aprofunde um pouco essa idéia!

MHP - Quando falo em dimensão política de ação sobre a realidade e em comunicação, entendo que não fazemos arte para nós mesmos. A arte é para o outro, ela acontece na relação com o outro, essa é uma concepção do materialismo histórico dialético. Quanto mais pública, mais diferenciada e intensa será essa obra. Quando se secciona a sociedade em classes e não se permite que uma determinada classe participe disso impede-se que um número imenso de pessoas se humanize através dessa produção essencialmente humana.

PMS - É possível ao artista sobreviver na sociedade burguesa sendo fiel à sua arte?

MHP - O artista que não se vende ao sistema enfrenta duras penas. Sobreviver da sua arte sem contar com uma outra fonte de renda, nesse contexto, é impossível, pois o sistema o coloca num ostracismo cruel. Da mesma forma, o artista que quer sobreviver dentro do sistema também vive assediado por problemas, pois deve estar sempre se enquadrando naquilo que está na crista da onda. Assistindo ao filme sobre Jackson Pollock, o pintor abstracionista norte-americano, vemos nitidamente ali a ação do sistema de arte, do mercado de arte sobre a produção dele, a ponto de, ao excluí-lo, ao retirá-lo do pedestal no qual o alçaram, pois ele não se alçou, foi alçado, enfim, quando ele é colocado num segundo plano, no período em que Willem de Kooning começava a aparecer, o seu próprio marchand, juntamente com a grande mecenas da arte, Peggy Guggenheim, e mais alguns críticos de arte, explicitamente disseram para o Pollock que ele já era. Então, ele deixa de produzir e se suicida. No sistema, os artistas têm que produzir constantemente, vendendo-se constantemente. Tal e qual no sistema de consumo tradicional, o artista é usado e descartado, pois o mercado só se mantém pela novidade. Todos os artistas que eu conheço que não se submeteram ao sistema possuem outra atividade profissional para a garantia da sobrevivência...

PMS - Sacrifício necessário para o combate a esse sistema daninho...

MHP - Exatamente, mantendo assim um foco de resistência essencial. Eu sempre digo a esses artistas que ensinem arte, que produzam seus trabalhos autênticos, que vendam seus trabalhos de forma a não se submeterem ao sistema. No caso dos artistas plásticos, às vezes o marchand fica até com 80% do valor das obras, o que é um absurdo. A venda direta ao comprador é o ideal. A submissão implica em amordaçar o artista à extração da mais valia, tal e qual o operário que não tem saída e que ganha um mísero salário mínimo. O artista verdadeiro não deve se conformar de forma alguma com a submissão, senão estará definitivamente perdido, fisgado por esse perverso sistema de arte da sociedade burguesa.

Fonte: http://www.jornalpequeno.com.br/2007/10/27/Pagina66641.htm

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